Esta entrevista foi editada para garantir clareza e comprimento, e foi traduzida para nossos leitores no Brasil. Read this in English.
Inaê Moreira: Oi Alexandria, muito prazer! Sou uma artista de salvador, bahia, brasil. Trabalho com as artes do corpo, dança e performance. Através do meu trabalho tenho investigando questões que envolvem ancestralidade e memória negra. Gostaria de saber o que você tem criado nesse campo: corpo negro, ancestralidade, memória?
Alexandria Eregbu: Oi Inaê! Há muitos trabalhos dentro da minha prática que lidam com o corpo negro, memória, e ancestralidade. Do ponto de vista da materialidade- uma das razões principais pelas quais eu comecei a trabalhar com a tintura do índigo veio da minha curiosidade para aprender mais sobre a contribuição negra à história da produção têxtil. Essa história não era reconhecida durante meu tempo na escola de arte, quando me concentrei em fibras. Intelectualmente, eu queria estar imersa em mais recursos que se refiram às conexões da África ocidental com os tecidos e com a performatividade como maneira de melhor informar meu entendimento de atividades culturais e tradicionais em comunidades africanas diaspóricas nos Estados Unidos. Na infância e adolescência, eu estava frequentemente entre mulheres que costuravam, bordavam, faziam colchas, e além disso adoravam se enfeitar de tecidos coloridos, brilhantes, e com texturas, como tie-dye e estampas de cera. Como uma criança, eu queria saber mais sobre suas origens. Então eu comecei a escavar e pesquisar.
O que descobri foi um universo enormemente vasto de ritmo, simbolismo, linguagem, e contação de histórias que está imbricado nesses tecidos do continente africano. Tecido que não serve só como modo de expressão criativa, mas que vem de uma tradição de cultivar significado e imbuir objetos com tanto funcionalidade como propósito. Muito do meu trabalho com índigo é uma ode àquela prática. A cor azul é significativa por suas associações com água, o céu, coletividade, comunicação, e emoção. Eu me vejo com frequência ativando memória e história familiar por meio de pintura, desenho, fotografia, e performance, como uma maneira de integrar o conhecimento gerado pelos meus lados materno (estadunidense) e paterno (nigeriano). Frequentemente penso na potencialidade que objetos carregam de empoderar e relembrar indivíduos, famílias e comunidades negros sobre onde estiveram, como uma maneira de reconhecer plenamente quem são. Para mim, o reconhecimento dos meus ancestrais e daqueles que vieram antes de mim tem um papel enorme em como eu testemunho a mim mesma e às minhas criações.
She Who Carries Weight [“Ela que carrega peso”] e Daughters of Mmiri [“Filhas de Mmiri”] são dois projetos que eu acho que destacam especialmente essas coisas
Você pode me contar um pouco mais sobre sua relação com a dança? Como você descobriu a dança, ou como ela te descobriu?
Inaê: Para falar como a dança me encontrou, preciso fazer uma breve introdução ao meu mundo. Faço parte de uma família negra, na cidade de Salvador, no estado da Bahia. Meu pai é artesão e ourives; ele constrói joias inspiradas nas ferramentas de orixás; minha mãe é uma mulher excepcional e criativa, que desenvolve um projeto de etnogastronomia chamado Ajeum da Diáspora, uma pesquisa sobre a culinária negra, trazida pelos povos africanos que chegaram aqui. Fui criada nesse contexto de criatividade e autonomia, e a arte e a espiritualidade fundamentam a minha existência. Cresci frequentando os terreiros de Candomblé daqui, onde acontecem os cultos aos orixás, e nesse espaço sagrado fui nutrida pela forma de manifestação de seres encantados, profundamente ligados a natureza. A dança é o canal de comunicação desses seres, eles dançam no centro do terreiro ao toque dos atabaques e dos cantos em Yorubá. Esse foi o meu primeiro encontro e convite para a dança.
Me fascinava a ideia de me comunicar através do movimento, de estabelecer uma conexão entre minha ancestralidade e espiritualidade. Quando terminei a escola entrei para a Universidade e me formei como professora de dança. Fiquei realizando algumas formações fora da minha cidade, durante sete anos, mas só quando retornei, em 2018, reencontrei o verdadeiro sentido do meu trabalho. Dançar não significava para mim desenvolver formas virtuosas, dominar técnicas, aprender coreografias. Dançar é o meu elo de ligação com os antepassados, estratégia de sobrevivência e espaço de cura. Por isso, hoje desenvolvo dois projetos que são importantes nessa trajetória. O primeiro se chama Dança Intuitiva para Mulheres, onde convido mulheres, que não precisam ser dançarinas ou artistas, para encontrarem sua própria dança. Proponho um espaço de cura e cuidado, para mover e transmutar as memórias de opressão vividas por nossos corpos.
O segundo projeto se chama TEMPO, uma performance onde busco reencontrar-me com outros entendimentos sobre o tempo, revisitando o tempo do trauma colonial, e buscando o tempo da cura; perguntando como meus ancestrais entendiam o tempo. Crio um ritual de soterramento e renascimento com cerca de 300 quilos de areia sobre mim. Em Chicago, em agosto de 2019, realizei a performance com mulheres negras do lado Sul da cidade, e foi uma experiência incrível. Espero ter contado um pouco do que me atravessa, e consigo sentir muita conexão entre as nossas criações.
Diante da trajetória que eu compartilhei, observo uma característica comum do nosso trabalho, que é a memória negra em diáspora. Sabendo da sua ascendência nigeriana, gostaria de saber se o tema da espiritualidade atravessa as suas criações, e como?
Alexandria: Pessoalmente, eu uso a espiritualidade como uma maneira de me conectar com a natureza, com meu subconsciente, e com o cosmos. Eu acho que a profundidade da alma [“soulfulness”] e a espiritualidade são duas qualidades que correm dentro de mim desde meus princípios. Acredito que herdei as minhas sensibilidades materiais e ambientais de ambos os meus lados materno e paterno, e que essas condições tiveram um grande impacto sobre a minha prática espiritual. Na minha família, todos gostam muito de comer e todos entendemos que a comida tem um grande papel no nosso companheirismo e na nossa capacidade de participar em uma comunidade. Nós temos nossas próprias receitas e compartilhamos essas memórias entre nós, invocando os prazeres dos nossos ancestrais e nossas origens. Nós sabemos que a nutrição, o local onde a comida é produzida, e depois onde é preparada, detêm um grande poder sobre o nosso bem-estar físico, intelectual e emocional. Há um entendimento comum de como utilizar os recursos, sem desperdiçar nenhuma comida por respeito pela contínua generosidade da Terra e pelo cuidado amoroso que é colocado em nossa comida pelas mãos que a preparam. Fazemos essas coisas em prol do empoderamento, da atualização, e da sustentabilidade.
Esse tipo de consciência é uma tradição que foi passada a mim através de gerações de consciência profunda, e definitivamente é a energia que trago comigo para dentro do ateliê. Eu considero estes elementos como materiais fundamentais que me sustentam durante minhas viagens e me tornam uma melhor artista e contadora de histórias. Sou infinitamente grata por isso, porque entendo que esse conhecimento me protege durante tanto os tempos mais difíceis quanto os mais abundantes.
Inaê: Que lindo. Compartilho tanto dessas sensações e propósitos. A experiência que vivi em Chicago fortaleceu a dimensão espiritual do meu trabalho. Nessa mesma perspectiva que você traz sobre natureza, subconsciente e cosmos, sinto que os diálogos criativos em diáspora sempre nos trazem novos elementos para nos aprofundar nos campos espirituais e artísticos. Perto de lá, em um país tão distante do meu, sem falar inglês, e mesmo com todas as barreiras culturais possíveis, pude encontrar outras mulheres negras, e experimentar uma sensação familiar, no olhar, no toque. Percebi uma herança ancestral que nos conecta e é inexplicável. Pude elaborar a perda comum que carregamos com a história da escravidão; é um abismo, que se preenche quando nos reencontramos em qualquer lugar do mapa e começamos a sentir nosso elo inseparável, sobretudo através da espiritualidade. Diante dessas sensações, gostaria de saber o que a experiência em Salvador te ofereceu nesse sentido? Como a sua negritude conseguiu se comunicar com esse território? E a sua arte?
Alexandria: Amo como você menciona as barreiras linguísticas como um fonte de fortalecimento da conexão espiritual. Eu falei muito sobre essa sensação com muitos participantes do Perto de Lá – refletindo sobre aquele teor de frustração por não poder nos conectar como sempre quiséramos, mas também sobre como o calor de um sorriso, risada, toque, gesto, imagem ou canção também tinha em si a capacidade de transcender as barreiras iniciais de comunicação que existiam entre nós. Eu penso sobre a negritude como uma grande fonte de criatividade e me percebi gostando muito da música e da poesia que foram gerados para produzir canais alternativos de comunicação enquanto estive em Salvador. Eu tive a oportunidade de ministrar uma oficina de tintura têxtil tie and dye na Casa Rosada, com um grupo de mulheres cuja primeira língua é o português. Eu trouxe alguns livros com exemplos visuais de métodos de amarração do Oeste da África, e também dei uma demonstração de tintura natural em colaboração com a artista Aislane Nobre, de Salvador. Tive uma surpresa boa ao ver a naturalidade com que todas as participantes se lançaram a todas as atividades assim que receberam as mínimas instruções. Foi um grande lembrete sobre o poder tanto da vontade quanto da demonstração. Mesmo que eu não conseguisse entender sempre o que era dito, eu pude ver a alegria nos rostos delas e o comprometimento que tinham para terminar seus trabalhos em um programa de seis horas. Aquilo foi muito significativo para mim, porque sugere que o espaço que compartilhamos continha tanto sentido quando ressonância–afetos que percebo cada vez mais difíceis de encontrar dentro do cenário capitalista hiper-saturado que infiltra muito da atividade “criativa” orientada à indústria nos Estados Unidos.
Meus interesses pessoais quanto à negritude e ao fazer artístico sempre estiveram investidos no surreal. Salvador parece ter muito a oferecer nesse âmbito. As pessoas têm muita liberdade (pelo que pude ver) para se expressar abertamente artisticamente, romanticamente, e espiritualmente. Não houve um lugar que visitei em que não ouvi ou vi graffiti, poesia, música, e ritual em ação. Esses tipos de intervenciones guiadas subconscientemente são altamente reguladas, quando não banidas por completo, aqui em Chicago.
Obrigada, Inaê, por entrar comigo nessa conversa verdadeiramente revigorante. Espero que continuemos a encontrar maneiras de nos manter em contato, e desejo tudo de melhor em sua jornada criativa!
Imagem em Dastaque: Como parte de “Perto de La <> Close to There” na Bahia, Alexandria Eregbu e Aislane Nobre ministraram uma oficina de tintura têxtil na Casa Rosada, em Salvador, Brasil, no dia 8 de fevereiro de 2020. Foto por Marina Resende Santos.
Marina Resende Santos é editora convidada de uma série de conversas entre participantes de “Perto de Lá <> Close to There”, um programa de intercâmbio de artistas entre Salvador e Chicago, organizado pelos projetos culturais Comfort Station (Chicago), Projeto Ativa (Salvador) e Harmonipan (Cidade do México e Salvador), entre 2019 e 2020. Marina é graduada em literatura comparada pela University of Chicago e trabalha com programação artística e cultural em diferentes organizações em Chicago. Suas entrevistas com artistas e organizadores foram publicadas nas plataformas THE SEEN, South Side Weekly, Newcity Brazil, e Lumpen Magazine.