Esta entrevista foi editada para garantir clareza e comprimento, e foi traduzida para nossos leitores no Brasil. Read this in English.
Amina: Oi João, eu estava olhando as gravuras feitas com as peles de animais de plástico abertas e achei que temos um interesse em comum naquilo que existe alem da superficie do dia-a-dia. Como você expressou tão bem, eu vejo seu interesse em uma “força capaz de romper a superfície daquilo que se acostumou.” Existe alguma coisa que você procura encontrar no desdobramento de um corpo? No rompimento da superfície? Há ainda alguma coisa que você não encontrou? O que continua a te mover nessa exploração?
João: Amina, oi. Vou tentar responder como posso porque não são perguntas de respostas fáceis ou imediatas. Ainda não encontrei nada e acho que nunca fiz pela resposta ou pelo que espero encontrar. Me mantenho nessa exploração pela própria força movente que uma pergunta, por mais banal que seja, pode ter e, nesse sentido, é aí que a superfície se rompe porque uma pergunta move outra e movendo mais uma, continua.
O que eu quero dizer (talvez a gente possa concordar nisso) é que, às vezes, as respostas podem vir fáceis demais e como artista, acho que esse pode ser um campo perigoso… algo que responde pode apaziguar um vulcãozinho e eu não quero ser apaziguado… Minha tentativa, então, é exercitar o meu olhar e buscar a minha perspectiva para aquilo que se apresenta diante de mim e talvez minhas obras sejam precisamente a impossibilidade de responder algo.
Pensando a partir disso, olhando seu trabalho, percebi a forte relação que eles têm com o tridimensional, mas não só isso. No meu caso, que venho da gravura e entendo a gravura como detentora de certa tridimensionalidade porque na gravura nada é plano, fui do bidimensional para o tridimensional (levando a gravura para o corpo e o pensando como um espaço gráfico, passível de imprimir suas marcas, dobras, vincos) e depois fazendo o caminho inverso (me apropriando de animais de plástico tridimensionais e transformando-os em matrizes e os imprimindo), como você percebe esse trânsito em sua obra? Fiquei pensativo sobre o seu processo criativo porque você trabalha com o bi e o tridimensional, o digital e o físico, com o seu corpo, de alguma maneira, como no seu trabalho “Soft Interiors” [‘interiores macios’]. Pode falar um pouco dessas relações, por favor?
Amina: Antes de responder às perguntas que você fez, eu quero responder com uma grande admiração pelo seu apreço por perguntas e a arte de perguntar. Eu penso muito sobre a natureza divina do mistério e do não-saber. E minha fascinação com os componentes misteriosos deste mundo e além que me fazem continuar fazendo arte. Para além de perguntar pelas respostas, eu acho sim que há descobertas que existem além de respostas mas ainda sim importam. Muitas dessas pequenas descobertas vem a partir daquilo que você descreve (tão belamente!) como o trânsito entre dimensões e espaços. O trânsito entre o bidimensional e o tridimensional, o digital e o físico, meu corpo e o objeto. Me intriga a liminaridade, o que eu considero como o entre-espaço do mistério, do não-saber, onde possibilidades do que é e do que pode ser se abrem. Meu interesse no liminal é informado de muitas maneiras pela minha relação com a minha própria sexualidade, raça, gênero, etnia, e um entendimento de identidade como algo que não é fixo; essencialmente, meu interesse em liminaridade vem da minha experience corpórea. E me movendo a partir daquele espaço eu me encontro perseguindo o entre-espaço entre as mídias. Na realidade sociopolítica do nosso mundo, me desperta a curiosidade como a liminaridade, o construir pontes e ligações, o não-saber, o fazer perguntas e a dissolução das fronteiras entre “aqui” e “ali” podem funcionar como modos reais e imaginativos de atender aos problemas do nosso mundo.
Vou voltar as palavras que você usou ao discutir a gravura, “nada é plano,” eu acho que a ausência da planeza também se aplica a outros aspectos do nosso mundo. Por exemplo, apesar do desejo da tela de televisão de desaparecer seu corpo e se realizar como uma imagem flutuante, uma tela plana de TV está longe de ser plana. E apesar de como conceitos sociopolíticos ficam reduzidos quando filtrados pelas redes de noticias, nenhum problema é um plano.
Eu quero te perguntar algo sobre planeza ou superfície, estrutura arquitetônica e o corpo. Como você vê essas coisas funcionando no seu trabalho?
João: Engraçado que ontem eu estava assistindo a uma série e num determinado momento da história uma das personagens disse algo como: ‘Posso perguntar se estou fazendo a pergunta certa?. Essa mesma pergunta, eu me faço constantemente porque ela abre espaço para tudo aquilo que não sabemos e ignoramos quando fazemos uma pergunta determinada. Nos últimos anos tenho tentado incorporar cada vez mais o não-saber ao meu trabalho porque nós vivemos cercados de informação, obrigados a saber de tudo todo o tempo, sobretudo em determinados espaços da arte. Eu não gosto da ideia da ‘pesquisa’ porque ela aproxima as coisas de um campo muito pragmático que me assusta e distancia, então eu prefiro pensar na ‘busca’ porque, mesmo que só na minha leitura semântica, ela permite um caminho de enunciados e incongruências que me interessa mais. Gosto de pensar enquanto vou fazendo, com as mãos, porque em certo nível, gosto de não fazer ideia de que estou fazendo e tenho buscado o não-saber como um método legítimo. Algo como não saber, mas precisar fazê-lo, um saber mais baseado na intuição do que numa espécie de pragmatismo científico. Isso não significa estar alheio ao meu próprio trabalho, pelo contrário, significa me colocar num estado tal de abertura que me permite ser atravessado pelas “possibilidades do que é e do que pode ser abrem”, como você escreveu. Nós precisamos ter alguma confiança no próprio processo, e assim eu sigo porque não posso fazer de outro jeito.
Nesse sentido, respondendo mais diretamente à sua última pergunta, eu preciso concordar com você porque tudo vem da minha experiência corpórea, de um desejo-ímpeto-tentativa de romper essa membrana de celofane que turva o incógnito. Irei responder com um trabalho, que se chama “como poderia eu de outro modo aproximar-me dele?” [“how could I otherwise approach him?”] (olha a pergunta aí de novo) que se relaciona com planeza ou superfície, estrutura arquitetônica e o corpo. Esse trabalho foi desenvolvido a partir da relação com uma obra arquitetônica da arquiteta Lina Bo Bardi, chamada Coati. Dos relevos que se salientam em relação à superfície natural, tentei encontrar no meu corpo, encarquilhado, franzido, as depressões que refazem essa arquitetura — espécie de contra-forma do homem, feita por ele, para ele e em sua escala — que envolve seu corpo, denuncia suas pregas e aponta suas sombras.
Por fim eu gostaria que você me respondesse com uma obra sua. Estou pensando especificamente no frame desse vídeo. ‘I don’t want to manifest my fears’ [‘eu não quero manifestar meus medos’], está escrito. Quais são os seus medos e como eles interferem no seu trabalho? Meus medos são tantos e eles não podem ser planificados ou achatados… No Brasil, na atual conjuntura política, sendo gay…
Amina: Obrigada por sua vulnerabilidade em começar a compartilhar seus medos comigo. Estes são tempos assustadores – a violência direcionada a pessoas queer, negras, pobres, imigrantes… é inegável, hiper-visível e sentida profundamente. Quando fiz aquele trabalho que você mencionou, “if today never gives up on me” [“se o hoje nunca desistir de mim”], eu estava passando por níveis altos de ansiedade, estava no meu limite e no processo de uma grande mudança na minha vida interpessoal, nos meus relacionamentos e no meu entendimento de mim mesma. A um nível estrutural e cultural, havia acabado de acontecer, nos Estados Unidos, uma série de assassinatos policiais de pessoas negras que não portavam armas, o que despertou medo, raiva, tristeza e a necessidade de mudança em mim e naqueles a minha volta. Eu senti uma onda de dor e energia para destruir aquilo que venho chamando de “as velhas maneiras” (colonial-branco-supremacista-cis-hétero…), sistemas de controle, administração, poder e opressão. Embora entenda que essas maneiras ainda não são velhas, chamá-las de velhas tem sido uma prática de imaginar um mundo sem esses sistemas nojentos de agressão e violência. Imaginar tem sido um espaço para me mover além do meu medo.
Quando não consigo me mover através do meu medo, quando ele fica estagnado ou não pode ser expresso, já senti meus medos se manifestarem como doença no meu corpo, no meu estômago ou como infecções respiratórias, tosses doloridas e resfriados. Eu me vi ficando muito doente com muita frequência, empurrada ao limite de mim mesma pelo medo.
Isso ainda acontece hoje, mas com menor frequência; tenho coletado meios e ferramentas e formas de medicação, convencional e experimental, para me ajudar a me mover pelo medo. Também encontrei em meu trabalho artístico uma maneira de me mover além do meu medo, de processá-lo, de transformar (ou transmutar) internamente essa energia por meio de um processo de análise (frequentemente na forma de meditação) e de amor, e depois externalizar algo que com sorte é criativo e imaginativo. Desta forma, minha dor, medo ou ansiedade se tornam um portal para aquilo que mais valorizo. Eu acho que até agora, meu medo impede meu trabalho somente quando ele me paralisa, mas quando sou capaz de segurá-lo, de olhar pra ele e cuidar dele com as ferramentas que colecionei, meu medo se torna minha magia.
Estava lendo um livro chamado The Body Keeps The Score [“O corpo conta os pontos”], de Bessel van der Kolk. Na introdução a autora fala sobre maneiras em que o trauma pode afetar nossa capacidade de imaginar. Eu penso muito sobre isso, e sobre a importância de praticar o imaginar e o sonhar. Meu trabalho com animação 3D, especificamente quando estimulo água no espaço virtual, me deu um exercício em imaginação, em ser capaz de determinar as condições físicas de um espaço com um programa, de estabelecer um estímulo de água dentro de um conjunto de condições físicas construídas e ver o que acontece. Esse processo tem me dado ao mesmo tempo um senso de controle e de abandonar o controle, que, penso, também está conectado com o processo de imaginar ou especular; há um equilíbrio entre abertura e intenção focada.
Gostaria de saber o que você faz com seu medo. O que imagina para seu futuro? Para o futuro daqueles que você ama? E se, e quando, há uma interseção entre essas coisas no seu trabalho artístico.
João: Obrigado por compartilhar seus medos e angústias. Obrigado por ser uma artista e seguir se opondo a ceder ao que te assombra. Não estamos sozinhos em nossos medos porque o que faz sombra na gente, é o mesmo que escurece no outro. Acredito que essas sombras são importantes porque elas nos ajudam no processo de visão e partir delas podemos reconfigurar e reconstruir nossa percepção. No último ano tenho desenvolvido um trabalho que surgiu de um exercício de desenhar no escuro e pensar as formas que daí derivam…
A ideia não é decalcar uma silhueta, mas é pensar essas sombras como índices, autônomas, formas que reclamam algo que só é perceptível nesse jogo entre opacidade e transparência. Esse primeiro processo resultou numa série de gravuras em metal que se chama ‘aquela paisagem distante que você atravessou’, e coloca esse corpo não reconhecido em foco, numa tentativa de inventar(iar) a planície de um território que sua sombra imprime quando o mesmo se interpõe entre luz e papel. Um mapa impresso de sombras e clareiras encontradas em algum trajeto. Agora tenho trabalhado com borracha industrial e o processo, agora tridimensional, consiste em recortar nessa borracha e em outros tipos de plástico que tenho pesquisado, as formas surgidas dos desenhos… a ideia é que tudo isso se torne uma grande instalação. Também tenho pensado nos materiais que estou usando a partir dessa relação, como o carvão e o grafite, que são opacos, impermeáveis, adiáfanos; e o papel vegetal, transparente, translucido. Cheguei à conclusão que dando forma é que eu entendo, então acho que dar forma às minhas sombras, é um jeito meu de lidar com os medos…
De qualquer maneira, logo mais poderemos conversar pessoalmente sobre todas essas questões porque você está vindo ao Brasil para o Perto de lá. Você já sabe o que pretende desenvolver aqui durante a residência, quais as suas expectativas? Quero saber de tudo.
Amina: Também quero saber de tudo! Além disso, estou intencionalmente deixando muito do meu trabalho para ser definido quando estiver aí. Eu também estou animada para te conhecer pessoalmente. No momento, tenho algumas obsessões e curiosidades. Pretendo pesquisar e coletar videogravações das águas. Visitar igrejas. Embora não saiba exatamente o que vou explorar, há alguns assuntos que me interessam: os sonhos, a água, a meditação, o movimento. Me interessa a arquitetura física e metafísica do espaço sagrado, e a relação entre a sacralidade e a imagem cinemática. A reverência aos ancestrais e Iemanjá, dentro de um contexto filosófico. Também a minha própria conexão familiar com a coletividade, devoção, e prática de espiritualidade ioruba-diaspórica.
Nos vemos em breve!
Imagem em Dastaque: Quadro de “Etheric Bridge (Winter’s Grief)” [“Ponte etérea (Mágoa de inverno)”]. Imagem cortesia da artista.
Marina Resende Santos é editora convidada de uma série de conversas entre participantes de “Perto de Lá <> Close to There”, um programa de intercâmbio de artistas entre Salvador e Chicago, organizado pelos projetos culturais Comfort Station (Chicago), Projeto Ativa (Salvador) e Harmonipan (Cidade do México e Salvador), entre 2019 e 2020. Marina é graduada em literatura comparada pela University of Chicago e trabalha com programação artística e cultural em diferentes organizações em Chicago. Suas entrevistas com artistas e organizadores foram publicadas nas plataformas THE SEEN, South Side Weekly, Newcity Brazil, e Lumpen Magazine.