Esta entrevista foi editada para garantir clareza e comprimento, e foi traduzida para nossos leitores no Brasil. Read this in English.
Adriana Araujo: Gostaria de começar nosso encontro pelo meio, esse tempo aqui agora, nos constituindo continuamente. Estou neste momento ao lado de uma árvore a quem chamo de Generosa, é uma mangueira do quintal da casa que vivo, que dá frutos suculentos e doces, ela abriga pássaros, lagartixas, morcegos, formigas, entre outros seres vivos, alguns invisíveis. Além de abrigar um mundo inteiro em si, Generosa produz sombra e ameniza o calor nos dias ensolarados da cidade que vivo faz pouco menos de cinco anos, Santa Maria da Vitória. Aqui quase todos os dias (às vezes penso que as noites também) são de sol intenso. O céu hoje amanheceu parcialmente nublado, mas quase sempre o céu é bem azul. Quando sinto muita saudade de Salvador, o lugar onde nasci e vivi a maior parte da minha vida, é só olhar para o céu e me inventar mais perto do mar. Pelo azul a gente quase acredita que o mar está logo adiante, mesmo estando a 930 km de distância, e com viagens somente por terra, por estradas não muito bem cuidadas pelo Estado, o que acrescenta mais 600 km ao percurso. Aqui, boa parte do ano há poucas nuvens no céu, então, vez ou outra surge uma pequena nuvem parecendo um tufo de algodão, comparada não somente à textura de algodão, mas também ao tamanho de um tufo de algodão. Outras épocas as nuvens junto com o sol, produzem um verdadeiro espetáculo nos fins de tarde; um espetáculo, Josh, as nuvens em chamas, nos finais de tarde daqui. Estou no extremo oeste da Bahia, uma região de transição entre biomas da caatinga e do cerrado. Aqui não há somente nuvens de algodão, mas também fazendas inteiras que produzem monoculturas de algodão e soja, fazendas subsidiadas com recursos públicos sob o pressuposto falacioso de ganho econômico e social, massivamente divulgado em rede pública de televisão, mas o que acompanhamos de perto é o aumento da pobreza e da desigualdade.
Ainda é possível às sextas-feiras comprar produtos da agricultura familiar, na feirinha da cidade de São Félix do Coribe, do outro lado do Rio Corrente, que, neste ponto em que estou esse afluente do rio São Francisco, ainda é um belo rio passado por duas cidades. A feirinha é um momento alegre, de encontrar as pessoas que plantam alimentos e encontrar alguns alimentos livres de agrotóxicos. Estamos também em uma região em processo agressivo de devastação. Pesquisas recentes divulgaram que a água que bebemos é uma das mais contaminadas por veneno na Bahia, os cursos dos rios têm sido desviados para irrigar as plantações dos grandes fazendeiros e latifundiários que ainda utilizam métodos dos mais arcaicos de apropriação de territórios aqui no Brasil, avançam com o extermínio da fauna, da flora e das populações tradicionais. Pois então: vim parar aqui porque acredito no poder transformador da arte e da educação, sobretudo, na potência das nossas ações. Estamos cultivando aqui uma universidade; eu trabalho em um curso que forma futuros professores de arte. Alguns dos estudantes egressos já estão atuando como professores em escolas públicas da região e isso tem nos dado uma energia imensa. Ainda estou descobrindo esse lugar, através do desejo de construir formas de viver. Criar formas de viver é o que me interessa como arte.
Josh, você poderia falar-me um pouco sobre o seu aí e agora?
Josh Rios: Meu aqui e agora é um pouco distópico, para ser honesto–mas quando é que os Estados Unidos não foram distópicos, para aqueles de nós que foram feitos matáveis a serviço do colonialismo de ocupação ou do tráfico transatlântico de escravos? Este é um tempo e um lugar pontuado pelos julgamentos do impeachment do presidente, que funcionam como evento midiático surreal e como crise política com efeitos materiais, especialmente para os mais desapossados entre nós. Meu aqui e agora é caracterizado por tiroteios em massa, por violência policial impune, pelo crescimento do nacionalismo branco, pelo planejamento urbano racializado, por centros de detenção onde crianças de migrantes compulsórios são separadas de seus pais na fronteira entre os EUA e o México–uma prática que está levando à negligência, abusos, e morte.
A xenofobia está em todos os lugares; as notícias são falsas. Escolas públicas estão desinvestidas, as pessoas estão incapacitadas pela dívida, e a privatização é imaginada como a solução para todo problema social. Os políticos veem a si mesmos não como servidores públicos, mas como moguls imobiliários cuja ideia de política social é ou a gentrificação, ou a produção de riqueza pela extração de aluguéis, tudo a custo das comunidades pretas e pardas, e dos pobres.
Ao mesmo tempo, o meu “aqui” e “agora” são também o “lá” e o “então”, quer dizer, eu sou do meu tempo e espaço mas também sou constituído pela história e pelas correntes de interação global. Não existe um “aqui” isolado e nenhum “agora” a-histórico. Eu vejo local e tempo como palimpsestos heterotemporais. Há muitos “aquis” e “agoras” inscritos em cada lugar ou momento. Meu aqui e agora também é pedagógico, como membro do corpo docente de baixo status na Escola do Instituto de Arte de Chicago (uma das escolas de arte mais caras do país). Eu estou num constante estado de conflito, enquanto negocio a ética da minha relação com estudantes, outros professores, variadas instituições de arte, e conceitos maiores, como a comodificação da criatividade e a neoliberalização da diversidade e da inclusividade.
E através de tudo isso, eu me esforço para transformar, para perturbar modos normalizados de pensamento, para usar a criatividade para propor novas perguntas e questionar interpretações comuns de cultura e poder. A crítica e a criatividade acenam uma à outra através do terreno semiótico da diferença e da similaridade, em direção ao qual me afino e espero transmitir a meus alunos. Mas os alunos tem seus próprio problemas; e seus futuros são mais incertos do que nunca. Como um cidadão estadunidense de ascendência mexicana, eu me ocupo muito com a fronteira entre EUA e México como uma zona de contato, como tecnologia biopolítica e como espaço discursivo, apesar do meu afastamento físico ao viver no meio-oeste, em Chicago. A fronteira e a zona fronteiriça parecem distantes e próximas ao mesmo tempo.
Quanto à troca intercultural e ao diálogo transnacional, gostaria de ouvir mais sobre o papel que a arte e a criatividade desempenham na criação de novos tipos de política e espaços sociais. Estou muito curioso para ouvir mais sobre a universidade que você está cultivando, qual o aspecto deste cultivo, e como você o vê transformar relações ou envolvimentos sociais.
Adriana: Para a primeira pergunta: Josh, seu relato é uma descrição muito próxima do que vivemos aqui, ao sul, e revela as muitas similitudes das nossas experiências distópicas. A distopia é uma forma de amolar a lâmina perceptiva. Mas, acredito que para além do anúncio do fim do mundo, precisamos criar uma necessidade insurgente de “adiar o fim do mundo”, como propõe o líder indígena Ailton Krenak. Ele diz que para adiar o fim do mundo precisamos usar nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas. Vejo o papel da arte aí, nesta construção dos paraquedas, feitos não no sentido de abrandar a queda, mas para nos ajudar a não sucumbir nesse contínuo despencar no abismo. Não sucumbir nos impõe sorrir, comer, dançar, amar, revoltar-se, manifestar-se, não permitir a aplicação de anestesias gerais em nossos corpos. Foi o que Hélio Oiticica apreendeu com a comunidade do Morro da Mangueira e que fez despontar os parangolés, vestiduras que solicitam ativa participação, criadas a partir da alegria viva de corpos da favela, em sua maioria corpos negros. Para mim, é neste sentido que a arte e a criatividade desempenham um papel na criação de novos tipos de política e espaços sociais: precisamente quando solicita, ou melhor, provoca, uma ativa participação e invenção de modos de ser e estar no mundo.
Para a segunda pergunta: A Universidade Federal do Oeste da Bahia foi criada em 2013, no governo da presidenta Dilma Rousseff, dentro do projeto de expansão e interiorização das universidades públicas federais no Brasil. Em 2014 foi implantado o curso de Licenciatura em Artes Visuais do Centro Multidisciplinar de Santa Maria da Vitória. Das cinco unidades universitárias em diferentes cidades da região, o campus de Santa Maria foi resultante das reivindicações de movimento populares por uma instituição de ensino superior público no Território da Bacia do Rio Corrente.
Estar em uma universidade pública, gratuita e interiorizada caracteriza uma distinção em relação às nossas realidades pedagógicas, por enquanto, já que as Universidades e Institutos Federais no Brasil estão passando por inúmeros ataques produzidos pelo atual governo e estão sobre forte ameaça de privatização, seguindo um modelo comprovadamente fadado ao fracasso, como você nos descreve. Lidar com essa iminência de desaparecimento das instituições públicas de ensino superior e com uma falta de perspectiva política ao tempo em que precisamos dar conta do nosso trabalho anuncia um importante aspecto do cultivo: resistir.
Outro importante aspecto do cultivo desta universidade, penso, está em desconstruir a ordem eurocêntrica do conhecimento. Sinceramente, ainda não sei em que medida nós temos conseguido produzir os desvios necessários para isso, já que essa tarefa exige um exercício de desaprender as certezas estabelecidas e de oposição às posições coloniais cravadas em nossa cultura. Para o cultivo é preciso subverter em muitos pontos a própria ideia de universidade. As ações conjuntas com os estudantes, com outros professores e com a comunidade, nos ensinam sobre a complexidade e as singularidades desse território, e muito sobre as urgências do mundo. Esse vivo contato, que é a parte essencial do cultivo, nos faz investir com mais intensidade na arte e a educação como ativadoras da nossa capacidade criativa, dos modos de pensar e agir. A arte pode funcionar como agente modificador dos equívocos modos tradicionais de educação que ainda estão a serviço da manutenção e imposição das demandas de um sistema opressor. É nesse sentido que o cultivo tem um grande potencial. Precisamos descobrir mais sobre a reinvenção da educação por meio da arte, para a educação ser outra coisa e a arte também.
Neste momento, vejo este cultivo como movimento de criação de possibilidades. Posso afirmar que há alguns indícios de uma cultura universitária diferente da que vivi quando estudante na capital da Bahia. Ainda temos poucos professores negros no quadro docente, mas boa parte dos nossos estudantes são filhos ou netos de trabalhadoras e trabalhadores rurais, e num histórico de desigualdade social sistêmica, isso aponta para algum sentido de liberdade. Quando alguém inicia um projeto para o semestre letivo sobre o seu quintal, repleto de plantas medicinais, ou sobre manifestações culturais locais–em vias de desaparição, junto com seus idealizadores anciãos–, é possível fortalecer um olhar da comunidade sobre si mesma e intensificar a força desse lugar como espaço de resistência. Com isso, as velhas estruturas de dominação são desafiadas, sacudidas. Nos encontros em viagens de campo e projetos de extensão, nos juntamos para ver, dizer, fazer, acessar situações que nos são muito próximas, mas que nunca concebemos pensar de outras maneira. Nestes momentos percebemos aquela faísca que acende como quando atritamos algumas pedras para produzir energia.
Josh, vi alguns dos seus trabalhos, que me fizeram pensar sobre a relação do Brasil com o passado, em especial sobre as questões raciais, e também sobre o futuro, que para muitos de nós nunca chega, exatamente pela relação mal resolvida com nosso passado. Gostaria de saber mais sobre seu processo de criação e sobre o jogo que você produz entre uma racionalidade ficcional e uma realidade histórica e social. Por fim, gostaria de ler sobre os atravessamentos entre sua prática pedagógica e artística.
Josh: De muitas maneiras, me vejo como historiador cultural, mas um historiador tanto interessado em sonhar e envisionar, como em ler e pesquisar. Sou um historiador que valoriza o escrever lado a lado com o imaginar e que enxerga as limitações da história e as lacunas no arquivo como um convite para sonhar a transformação social através da criatividade. Também considero a história como parte do domínio público, os “commons,” que é um aspecto de posse coletiva da nossa realidade social e que é colaborativamente produzido dentro de um campo de poder. Esse tipo de pesquisa-como-sonhar e história-como-visão nos permite trazer novas maneiras de ser e estar no presente e de imaginar o futuro, assim como novas maneiras de ver os acontecimentos do passado como sempre presentes. Há uma qualidade heterotemporal profundamente enredada em nossas realidades e experiências (uma mistura infinitamente complexa), que o capitalismo tenta estridentemente desmembrar. É claro que o passado não é recuperável, o que o torna de certa forma radicalmente ido, o que é a condição primária da história como narrativa escrita. Essa condição geral da história é o motivo pelo qual acho que sonhar é tão útil para preencher a aporia e imaginar novas maneiras de ser que desafiem as normas e narrativas dominantes.
O historiador cultural Peter Burke notou que a história costuma ser escrita pelos vencedores, mas também que são os vencedores que tem o privilégio de esquecer o passado, enquanto os perdedores da história contemplam continuamente todo o potencial perdido e todos os futuro erradicados pelo colonialismo de ocupação e o capitalismo. Aqueles que foram feitos perdedores da luta política veem a história destes passados violentos em todo lugar; eles são sempre-presentes, mas apenas nas margens, nunca na narrativa dominante. Nos Estados Unidos, há uma forma insidiosa e voluntária de amnésia política, cultural e histórica que é empregada em momentos-chave a fim de apagar e diminuir as violências que deram forma a este país. Ao mesmo passo em que os Estados Unidos são um Estado-nação moderno, eles são perpetuamente assombrados por esse passado violento, como sugerem os teoristas críticos de questões raciais Eve Tuck e C. Ree. Eu penso no meu trabalho como parte dessa assombração, esse perpétuo retorno do passado ao presente–uma interpretação e re-contação contínuas do passado através do desenvolvimento de abordagens políticas e filosóficas.
Pedagogia e práticas criativas estão interligadas. Para mim, a pedagogia não tem o único objetivo de transferir especialidades–e não considero lecionar como uma inscrição de informação finalizada sobre estudantes passivos, o que Paulo Freire criticou como o “modelo bancário” de educação. É mais sobre criar oportunidades para construir campos de entendimento através do compartilhamento e colaboração. Enquanto procuro, sim, expandir a compreensão dos estudantes acerca dos vários contextos e assuntos que preocupam artistas contemporâneos, meu principal objetivo é criar um ambiente onde estudantes gerem suas próprias motivações e relacionamentos críticos bem-informados com discursos, teorias e histórias atuais. Essa é uma maneira desafiadora de operar, dada a maneira como a economia neoliberal afetou a educação superior, transformando-a de um caminho para o pensamento crítico em um produto que deve ter resultados mensuráveis e quantificáveis. Mas como se pode medir a conscientização, politização, e os efeitos de uma busca para transformar a esfera social através de práticas tanto ativistas como culturais?
Com relação ao Perto de Lá, gostaria de ouvir sobre como você entrou no programa, e quais têm sido os resultados dessa troca para você, como artista ou ativista.
Adriana: É. Essa lógica imposta, do consumo ou do produto como fundamento das nossas relações, produz muito do empobrecimento das nossas experiências de vida, não é?
Sobre o projeto Perto de Lá, entrei no programa a convite da artista e curadora Lanussi Pasquali. Fiquei muito entusiasmada com a proposta de viajar com outros artistas de Salvador e fazer uma imersão na cidade de Chicago, conhecer pessoas e o desenvolvimento de seus trabalhos, viver a experiência do deslocamento/viagem que considero sempre muito desafiadora. O encontro “Perto de Lá” me provocou profundamente. Acho que os resultados têm muito do sentido da nossa conversa, de suscitar reflexões, e penso que esse é um bom começo.
E você, quais os seus planos e expectativas sobre a experiência Perto de Lá em Salvador?
Josh: Meu plano realmente é aprender o máximo que puder sobre a maneira como os artistas se sustentam aqui, e prestar especial atenção a modos alternativos de produção cultural, isto é, alternativas para instituições sancionadas pelo Estado, como museus. Outros modelos de dar espaço a arte, música, e pensamento crítico são o meu mais intenso interesse, e eu sinto que tenho muita sorte de ter a oportunidade de testemunhar outras formas de ser. Vamos visitar arquivos, participar de performances improvisacionais, e aproveitar a companhia dos artistas que participaram da troca e vieram a Chicago. Minha expectativa é ficar impressionado e admirado com a criatividade e o pensamento crítico aos quais serei exposto pela comunidade artística de Salvador.
Imagem em Dastaque: Adriana Araújo (centro) dança entre participantes do “Experimento Oiticica,” inspirado pelos “Parangolés” de Hélio Oiticica, parte do projeto “Terreiro Gambiarra,” realizado por Araújo com estudantes da UFOB em Santa Maria da Vitória, Bahia, agosto de 2017. Foto de Monica Navarro.
Marina Resende Santos is a guest editor for a series of conversations between participants of “Close to There <> Perto de Lá”, an artist exchange program between Salvador, Brazil and Chicago organized by Comfort Station (Chicago), Projeto Ativa (Salvador) and Harmonipan (Mexico City) between 2019 and 2020. Marina has a degree in comparative literature from the University of Chicago and works with art and cultural programming in different organizations in the city. Her interviews with artists and organizers have been published on THE SEEN, South Side Weekly, Newcity Brazil, and Lumpen magazine.